9.2.04

CARTA MAIS OU MENOS ABERTA A UM BEM-AVENTURADO

Não conheço o Sr. Amaro da Silva, melhor, só o conheço pela carta publicada no Nova Aliança de 11 de Dezembro, em que manifestou a sua repulsa e indignação de "bom católico" pela "ousadia" do Dr. Mário Piçarra em querer equacionar a "questão de Deus" e o "ser ou não ser crente".
Mal conheço o Dr. Mário Piçarra. Creio que nunca lhe falei pessoalmente, embora tenha sido professor de filosofia dos meus filhos mais velhos, que dele guardam boa memória.
Não é pois por amizade que aceito o convite por ele feito no Primeira Linha para testemunhar sobre as minhas "dúvidas religiosas", mas porque é minha convicção que, actualmente, os males do mundo (e em particular os do nosso país) têm 3 causas principais:
a) o conflito entre ciências e religiões (principalmente as monoteístas);
b) o processo generalizado de um pensamento defeituoso, em que se toma constantemente a parte pelo todo;
c) a utilização absurda dos meios de comunicação social por parte de alguns jornais e, principalmente, de algumas estações de televisão, que parecem cada vez mais apostados em estupidificar, confundir e enganar.

Vou expor as minhas dúvidas em jeito de interrogações ao Sr. Amaro da Silva, que certamente me irá elucidar, como bom católico que diz ser e dadas as suas inabaláveis certezas.
Em primeiro lugar, um esclarecimento: não sou cristão, (nem crente de qualquer outra religião), mas também não sou ateu, pertenço a uma "espécie" que o Sr. Silva parece ignorar -- sou agnóstico praticante...
Confesso a minha incapacidade para compreender a natureza e os atributos de Deus, mas não sei explicar sem pensar num Criador, todo o esplendor maravilhoso que há no Universo, (a sua dimensão, a variedade de corpos celestes, a energia nele contida...) e nas diferentes formas de vida, (o sopro de energia que as faz nascer e as anima, os sistemas complexos de órgãos que controlam o seu crescimento, a relação com o meio em que vivem, a beleza das formas que alguns animais e plantas nos oferecem). Mas a minha "religiosidade" para aí.

Há pedaços da prosa do Sr. Silva para mim algo obscuros, talvez porque não andei em seminários e já acabei o liceu há quase 60 anos...
Por exemplo:
"(Mário Pissarra) tem a ousadia de colocar a religião em pé de igualdade com a ciência, as ideologias e a filosofia para dar sentido à vida. Só a religião pode dar sentido à vida, porque só a religião é da ordem do absoluto e do transcendente"
Se bem entendi, o Sr. Silva está redondamente enganado. Eu, que não professo nenhuma religião, tenho dado um sentido à minha vida. E se "só a religião é da ordem do absoluto e do transcendente (???)" a verdade é que só a ciência funciona, isto é, só a ciência tem permitido vivermos com as comodidades da civilização. Será o Sr. Silva um monge eremita?

O Sr. Silva certamente acredita que o Mundo foi criado tal e qual como é descrito na Bíblia, que a Terra foi criada em primeiro lugar e em seis dias e só depois, no quarto dia, Deus criou o firmamento, "com dois grandes luzeiros e também as estrelas". Está no seu direito. Pensar cansa um bocado. Eu não acredito, e se não entendo completamente a teoria científica do Big Bang penso que a culpa é minha. Felizmente para mim, hoje posso dizer, sem grande receio de ser condenado ou contraditado, que a Terra não é o centro do Mundo e que não passa de um minúsculo grãozinho do Universo. Há cinco séculos, corria o risco de "bons católicos" me mandarem queimar vivo...



O Sr. Silva já olhou para as estrelas por um telescópio? E faz ideia do que seja um ano-luz? Eu cá não faço.
Se me permite uma sugestão, vá uma noite ao Observatório de Constância e olhe as estrelas. Talvez de lá venha menos convencido da importância que a Terra tem na "obra divina" e comece a desconfiar da existência do céu que lhe foi prometido.

O Sr. Silva certamente acredita que Deus criou Adão e que de uma sua costela fez nascer a sua companheira Eva. Também deve acreditar que todos os males do mundo resultam do pecado original. Eu não acredito. Se hoje, como desde tempos imemoriais, há tanta guerra, tanta maldade, tanto sofrimento infligido, tanta fome e miséria por esse mundo fora, porque é que a culpa ha de ser de Adão e Eva e do seu pecado original e não dos que causam esses males? Se Deus é omnisciente, omnipotente e infinitamente bom, porque criou a serpente ? E porque a amaldiçoou, se tinha sido criação sua? E porque não lhe perdoou, condenando-a a andar de rojo e a comer pó todos os dias da sua vida ? E porque é que Deus permite o sofrimento de inocentes? É para lhes garantir o céu?
Mas então Deus é sádico?

E como explica o Sr. Silva que as calamidades naturais, -- terramotos, inundações, vulcões, ciclones,. ..-- que não são, evidentemente, da responsabilidade do Homem, matem aos milhares de pessoas e que tenha havido epidemias que tenham matado milhões ?. O Deus do Sr. Silva é "omnipotente, omnisciente e infinitamente bom" ou é o maior dos terroristas?

Deus (Pai, Filho e Espírito Santo) é ou não um Ente Supremo?
Se sim, como é que nos vê? Com olhos humanos? Ou com olhos de lince? Ou de morcego? Ou de mosca? Ou de tubarão? Vê cada pessoa só pelo exterior ou também consegue "ver" os nossos órgãos? E com que ampliação? Como se estivesse equipado com microscópios? Raios X? Ultra-sons? Se Deus é "todo poderoso, criador do céu e da Terra e de todas as coisas visíveis e invisíveis" estará a "ver" em simultâneo todas as transmissões de televisão do nosso mundo e a "escutar" todas as conversas por telemóvel...?

Que é o "tempo" para Deus ? Capta toda a informação da Terra minúscula e de todo o resto do Universo em simultâneo? Que é o futuro para Ele? É presente? Então onde está o nosso livre arbítrio?
E a que nível actua quando resolve fazer milagres? Por exemplo curar um doente terminal? Actua nas células? Insufla energia extra ? Envia mensagens para o cérebro do doente?
E quando é que "nasceu" esse Ente Supremo? Existiu sempre? Há milhares de milhões de anos ? Antes do Universo? E "onde" se encontra ? Em todo o lado? No "céu"? Mas o "céu" não foi ainda detectado por qualquer satélite ou sonda espacial...e, até prova em contrário, perto da Terra parece não existir !

Espero que o Sr. Amaro da Silva tenha a bondade cristã de me esclarecer, mesmo chamando-me os nomes que quiser...




Um "post-scriptum" para o Dr. Mário Pissarra.

Em primeiro lugar, um muito obrigado pela sua ideia de dar "este pontapé de saída". Também creio que deve ser por aqui que se deve tentar modificar as mentalidades que, em Portugal, nos têm condenado a esta "apagada e vil tristeza" em que caímos. Claro que não estou nada optimista quanto à eficácia do método... Nem precisava da primeira amostra !
A sabedoria da quase totalidade dos seres humanos, está atrasada centenas de anos em relação ao que os cientistas hoje conhecem sobre o corpo humano, a Vida e o Universo. São por isso incapazes de se aperceberem do milagre permanente que é a fotossíntese e da complexidade maravilhosa de qualquer ser vivo, mas também são incapazes de tomar consciência da insignificância da Terra e das suas gentes à escala universal.
Os ministros que dizem acreditar que a Virgem Maria controla as marés negras, os presidentes dos clubes de futebol que agradecem a Deus a conquista de um campeonato, os atletas que invocam para si as graças divinas antes de uma competição, estão ao mesmo nível (de egoísmo, vaidade e ignorância) dos que cumprem promessas e sofrem penitências na esperança de comprarem o Céu, dos que aplicam a sua força bélica para impor aos outros a fé que os cega, ou dos terroristas que se matam na esperança de que Deus agradeça o seu sacrifício e destrua os seus inimigos...
Mas é difícil vencer este orgulho vaidoso de nos termos por importantes.
Estamos de tal modo condicionados pela cultura religiosa em que fomos criados que mesmo os não-crentes estão constantemente a dizer : "Deus queira que amanhã esteja bom tempo", "Só por milagre escapámos", "Graças a Deus, não passou de um susto" "Até amanhã, se Deus quiser". E, todos nós, ao jogarmos no totoloto, estamos intimamente esperançados numa "mão invisível" que faça justiça ao nosso merecimento para arrecadarmos um "jackpot"...
No dia em que todos reconhecermos que não há "milagres", isto é, que Deus não interfere directa e individualmente nas nossas vidas e que não há "paraísos celestes" ou "infernos" à nossa espera, sentiremos que somos mais responsáveis pelo que fizermos nesta nossa vida e retiraremos uma satisfação mais sã, mais genuína e menos egoísta das boas acções que praticarmos.
Da sua "Opinião", publicada em Novembro no Primeira Linha, retive principalmente o primeiro ponto. Os mitos, as religiões, as filosofias e as ciências devem, na realidade, ter surgido para dar respostas aos problemas dos homens. Mas quem dá as respostas ganha prestígio, poder, qualidade de vida... e não está normalmente disposto a renunciar a essas benesses. Daí lutas, guerras, terrorismos... O trágico é que nas guerras há sempre quem se ponha a salvo e mande os outros morrer...

Tramagal, 29 de Janeiro de 2004
A. Carvalho
coelhocarvalho@iol.pt

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